quinta-feira, 5 de maio de 2011

O Gato

Antes do cão havia o gato, o gato era mais impessoal, protocolar, não era de festa, não tinha expressão, nunca estava triste, nem ficava alegre, no máximo raivoso, quando se via nele eriçarem-se todos os pelos do dorso. O gato era silencioso, reticentes em seus miados, era independente e agia com indisfarçável interesse.
O gato não podia ouvir o barulhinho do pacote de salgados sendo aberto, que vinha mais que depressa, porém, sem vozearia, sem algazarra, vinha com sua leveza de pluma clássica e se enroscava na perna da moça ingênua, numa infinda coreografia de oitos até que ela estendesse para ele o aperitivo.
O gato era cheio de preferências, gato de fino trato, não gostava de Castanha do Brasil, preferia Avelãs ou Pistaches, o gato era refinado, não comia sardinha, só atum, atum triturado e sem óleo com uma pitada de molho shoyo e duas gotas de azeite importado extra-virgem e isto se não fosse semana santa, pois nesta semana não aceitava nada menos que bacalhau à portuguesa.
O gato se magoava, andava sobre os móveis mais altos, olhava de canto de olho e fingia greve de fome, de modo que ela ficasse cheia de dedos. Ela o acariciava de cabo a rabo, mas quando chegava no rabo ele puxava de volta, ela preocupada ligava para o médico, o gato não andava bem, estava sem apetite, sem ânimo, o gato dava sinais de depressão.
Ela passava no supermercado, na fileira das rações mais caras, que por sinal também eram as preferidas do gato, atrás daquele patê de fígado de ganso que era a única coisa que poderia levantar o seu astral. O gato mal agradecido fazia cara de nojo, empurrava o prato com a patinha até que ela desistisse de tentar fazê-lo comer e ligasse para uma amiga que também tinha um gato, a fim de se aconselhar sobre quais eram as melhores medidas que o caso requeria.
Sem solução ela acabava por se entregar ao sono ao lado do prato intocado do gato, que só então, às escondidas, se deixava comer livremente. A cara do trabalho no dia seguinte era a mesma do dia anterior, retocado de duas marcas roxas sob os olhos e da feitura do cabelo desgrenhado. O gato indiferente, nada de anormal acontecera.
Ela de volta para casa e ele sem festa, ele num canto, um olho aberto e outro fechado, virava a cabeça para a direção oposta, o gato nunca olhava no olho, a não ser para censurar a desatenção com que ele era tratado. O gato preto de olhos verdes, à imponência de um puma africano, pelo brilhante, um gato chic era o que todo mundo dizia.
Gato é bicho educado, não deixa surpresinhas pela casa, gato é bicho limpo, auto-limpante, "Tão meigo", diziam as visitas. O gato era aparecido, fazia sala, poses, oitos e oitos nas pernas dos convidados, deitava até no colo da anfitriã quando havia alguém para apreciar, tão meigo, tão carinhoso, até que a visita sumisse atrás da porta e o gato, onde o gato.
Era bom ter um gato em casa, não ficar sozinha, um gato para ocupar a solidão, mas o gato era tão cordato que quase não se percebia a sua presença.
Numa manhã o gato portou-se especialmente discreto, tanto que ela não o viu pelo dia inteiro, e nem no outro, e nem na semana seguinte, ela começou a gastar menos, pois com o gato desaparecido para quê comprar ração. As pessoas até deram por falta do gato, mas ela dizia que isto era coisa de gato, já, já ele surgiria de detrás de uma cortina, porém, o gato se manteve circunspecto, a outra apareceu com o Labrador e foi então que ela teve a ideia de tingir a parede do quarto de azul.

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