quinta-feira, 28 de abril de 2011

O Cão

Uma última olhada, as luzes apagadas, o fogão desligado, a comida do cachorro na vasilha, a comida, a ração talvez não fosse suficiente, tarde demais, não havia mais tempo para uma parada no mini box da esquina, ele teria que se virar com a quantidade deixada ali.
Vejamos: óculos, batom, calcinha, protetor solar - Não sabia por qual motivo alguém que não gosta de sol sai de casa de dia - biquíni por debaixo da bata transparente - que ridículo - para depois das dezoito horas, mas alguém disse que não faria sol, ótimo, mas para que então, sair num dia de chuva, coisa mais estranha, alguém que não gosta de sol, esperar um dia de sol para tomar chuva porque para o sol do norte não existe proteção, aliás, a proteção seria aquela habitual, ficar trancada em casa, sob cinco toneladas de teto e dezessete de parede, na escassa habitação que ela própria desenhara e insistia em chamar de casa, a casa que ela pintara de azul e depois desistira.
Não. Estava agora no branco e no vermelho, o azul fora deprimente demais, substituíra-o a priori pelo lilás, de lá fora direto para o vermelho sem passar pelo rosa, depois o branco, o branco era definitivo, a sala toda branca da sua casa pequena e matematicamente desenhada tinha dois sofás de dois lugares pretos, sofás finos em couro e alumínio, a mesa transparente no centro sobre um tapete felpudo, sobre a porcelana igualmente branca, no lugar do televisor um quadro grande a óleo mostrava uma paisagem em branco e preto, um lugar coberto de neve com algumas árvores nas laterais completamente nuas e soturnas, no cantinho direito da sala sob um fino e comprido abajur de tela preta um sofá vermelho bordô, não um vermelho seco, nem uma poltrona qualquer, era uma poltrona moderna, mas com uma estampa antiquada, a moda dos vestidos das damas do século XV.
O cachorro precisava comer, porém, em algum lugar tinha lido que uma pessoa sobrevive até dez dias sem ingerir nada além de água, pelo tamanho do animal, talvez ele durasse cinco, ele sabia muito bem onde encontrar água, só não tinha aprendido ainda a fechar a torneira, além, ela não demoraria cinco dias para voltar, de modo que se tranquilizou, o cão iria sobreviver. Todos, invariavelmente, conseguiam sobreviver sem ela ou após ela e como desconfiar de que o cão não poderia, ele era mais do que um cão, era praticamente um gerreiro de selva, ele volta e meia com um calango verdinho entre os dentes, um calango achado ali mesmo no quintal.
O gás! Sim o gás. Já o havia verificado mais de três vezes, se não lhe falhava a memória ou talvez tivesse feito isso no final de semana passado, quando teve que voltar para colocar a comida do bendito cachorro, do bendito cachorro que ela também não sabia por que estava lá. Sabia sim, e fora muito bom que ele estivesse lá para lamber os seus pés ainda que contra a sua vontade quando as paredes ainda eram azuis, mas agora que as paredes eram brancas o cão tornara-se obsoleto, ele era o azul sob a grossa camada de gesso e tinta. Talvez fosse melhor devolvê-lo, mas devolvê-lo para quem? Ele era sim, a camada azul escondida, entranhada, ele fazia parte do ambiente e ele não deveria passar fome por uma questão de ética, ele era o lambedor de pés do tempo anil, ele era fiel, ele era um cão afinal.
Realmente faria um dia nublado, só se via o azul por um buraquinho na compacta nuvem acinzentada, colocou os óculos escuros, trancou a porta, caminhou colocado os pés exatamente no meio de cada bloco quadrado rodeado de grama que constituíam o caminho até o portão, o cão fiel ficou olhando da porta da casa que ficava isolada no meio do último terço do terreno trinta por sessenta, então ele saiu em disparada e ela ficou pronta para ter que trocar de roupa, mas aí ele parou, olhou-a dentro da alma e lhe pediu que ela não esquecesse que ele precisava comer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentar é irresistível...